sábado, 4 de fevereiro de 2017

As Faces da Criatura

por Danilo Duarte

            Há muito tempo venho querendo escrever um texto sobre o tema. Sou muito fã de Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, e sempre me incomodou muito que a história nunca tenha sido retratada como se deve no cinema. Entre as diversas mudanças (como Victor Frankenstein ser velho, morar em um castelo no alto de uma colina e ter um servo chamado Igor, por exemplo), a que sempre me incomodou mais foram as formas dadas à Criatura, tanto sua aparência física quanto sua personalidade.

            Leia minha resenha sobre a obra: Frankenstein, ou o Prometeu Moderno

           Principalmente graças à famosíssima interpretação de Boris Karloff, existe uma concepção errada sobre a aparência e costumes do Monstro e, ao ler a versão original da Criatura na obra de Mary Shelley, descobre-se o quão diferente a criação de Victor é. Primeiro, vamos ver como é o Monstro no livro a partir de alguns trechos:

            “Sua pele amarelada mal cobria o entrelaçamento dos músculos e das artérias; os cabelos eram de um negro lustroso e liso; os dentes, de perlada brancura; mas essas exuberâncias apenas serviam para formar um contraste mais medonho com seu rosto enrugado, seus lábios retilíneos e negros e seus olhos aguados, que pareciam quase da mesma cor que as órbitas de um branco pardacento em que se encaixavam.”
“(...) vi de repente a figura de um homem, a certa distância, a caminhar na minha direção com velocidade sobre-humana. Saltava sobre as fendas de gelo, entre as quais eu caminhara com cautela; também a sua estatura, ao se aproximar, parecia ultrapassar a do homem.”
            “Enquanto aperfeiçoava minha fala, também aprendia a ciência das letras.”
            “Além disso, era dotado de uma figura medonhamente deformada e asquerosa; não tinha sequer a mesma natureza que o homem. Era mais ágil do que eles e podia subsistir com uma dieta mais rudimentar; suportava o calor e o frio extremos sem maiores danos ao meu corpo; minha estatura excedia a deles.”
            “Certa noite, durante minha costumeira visita ao bosque da vizinhança onde obtinha comida e trazia lenha para meus protetores, encontrei no chão uma mala de couro com diversas peças de roupa e alguns livros. (...) A posse desses tesouros encheu-me de alegria; passei a estudar e exercitar a minha mente com aquelas história, enquanto meus amigos se dedicavam a suas ocupações cotidianas.”
            “Depois de algumas semanas, minha ferida (um ferimento à bala) sarou, e segui viagem.”

            Como se pode ver, a criatura tinha uma pele amarelada, doentia; olhos brancos e opacos, como os de um homem morto; cabelos negros lisos; seu corpo era maior, mais forte, resistente e rápido que o de um ser humano normal, além de possuir um poder de cura maior. Nota-se também sua inteligência e apreço pela literatura: além de aprender a falar e ler sozinho, era apreciador de boa leitura. Em nada se assemelha à sua versão mais famosa, como veremos a seguir.

Ilustração inspirada na Criatura de Shelley
 
            A versão interpretada por Boris Karloff não se parece em nada com a original, trazendo aspectos físicos e psicológicos bem distintos: a pele do Monstro era esverdeada; sua cabeça era quadrada e chata; possuía enormes parafusos em seu pescoço e seu andar era lento e duro, com braços estendidos para agarrar qualquer ser vivo desavisado. A Criatura sequer falava e não parecia provida de inteligência, tornando-se nada mais que um monstro bruto e irracional. Em comum, apenas a estatura avantajada e sua força e resistência sobre-humanas.



A versão de Boris Karloff

            Apesar de ser tão diferente, essa foi a aparência que, infelizmente, definiu o que é a Criatura de Frankenstein perante a cultura pop, a ponto de o grande público sequer saber como o demônio concebido por Shelley realmente se parece. Não é de se estranhar que chamem um ser sem nome de Frankenstein, diga-se de passagem. Como podemos ver nos exemplos abaixo, até mesmo nos quadrinhos e outras mídias a versão de Boris Karloff predominou, com Monstros de pele verde e parafusos pelo corpo.

Frankenstein, Agente da S.H.A.D.E., da DC Comics

Frankie, da Turma da Mônica 

            Creio que a versão que mais se aproxima da original seja a que nos foi apresentada na série de televisão Penny Dreadful. Note, na imagem abaixo, as semelhanças físicas com o que nos foi descrito: os cabelos lisos e escuros, a pele doente, olhos de cor diferenciada. Ainda assim, assemelha-se a um humano, mais parecendo uma pessoa deformada do que uma criação profana em si. Veja também que Caliban, como se denomina a Criatura na série, segura um livro: no programa ele é um devorador voraz de livros, recita poesias e é bastante intelectual, sendo a única versão que conheço a compartilhar tal característica com o original. Até mesmo a questão da alimentação é semelhante: enquanto a Criatura do livro come plantas e ervas, repudiando o consumo de carne, o único alimento que vemos a Criatura da série ingerir é sopa. E não nos esqueçamos também do quanto ele é forte, resistente e ágil, não possuindo apenas a estatura inigualável.

Caliban ou John Clare, de Penny Dreadful

Com mais semelhanças do que diferenças, em minha opinião esta foi a melhor adaptação da Criatura de Frankenstein. Infelizmente, esta é uma história que ainda carece de um filme ou seriado próprio que a adapte fielmente. Enquanto isso não acontece, podemos ler e reler Frankenstein, ou o Prometeu Moderno quantas vezes quisermos. E ver Penny Dreadful, uma série incrível.

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